Rotina sempre parecida. Passar fome pelas primeiras duas horas de aula, se acotovelar entre os colegas, como numa guerra campal, para comprar um cachorro quente, escutar a professora reclamar dos homens e do machismo, ouvir as meninas fazerem piada da falta de músculos e roupas sem marcas. Pegar o tio da van, com alunos mais novos que gritam o caminho inteiro. Chegar em casa e fazer um cup of noodles. Depois vídeo game a tarde toda, batalhas sem fim. Sonhava em poder colocar as mãos num rifle de verdade. Começaria baleando aquela professora que só dá nota boa para as meninas, depois o tio da van e todos aqueles fedelhos gordos e sarcásticos que cuspiam e jogavam resto de bolacha salivada uns nos outros.

Você deu bom dia para alguém hoje? (Foto de Emile Durkheim, pesquisador que criou os fundametos da sociologia e do funcionalismo estrutural).
Parece terrível essa história? O que temos em comum com os EUA é o fenômeno da criança da chave, the lachkey child. Crianças que crescem sem atenção, sem afeto, sem nenhum apego pela vida dela mesma ou dos outros. O fenômeno que mais cresce desde a segunda guerra mundial é justamente o abandono de crianças em lares de classe média e classe média alta. Pais cada vez mais distantes e indiferentes.
Os estudos sobre o suicídio são fundadores da sociologia. Emile Durkheim em O Suicídio (1897) identificava o fato básico, o ser humano é social, quando se isola da sociedade sua vida perde sentido e passa a ser um suicida. Em uma sociedade que não valoriza o afeto, o respeito mútuo, que foca excessivamente no consumismo e na aquisição de bens descartáveis é que leva a fenômenos como os de Columby ou de Suzano.
O acesso a armas, martelos, facas, fogos de artifício, anzóis, correntes de aço, carros, liquidificadores ou outros tipos de artefatos que podem ser usados para matar não é o que determina a intenção de serem cometidos assassinatos ou suicídios. Claro que uma fuzil é mais letal que uma foice ou um martelo. Mas a origem do ato violento não está neles e sim na falta de afeto, de conversa, de respeito mútuo, de tratar com igual atenção a todos, mesmo aqueles que não votaram no candidato de sua preferência, que não usam o tênis que você mais gosta, que não jogam o esporte que você curte, que não escutam a música que lhe faz dançar.
Bernardo
O julgamento do menino Bernardo nos revela o outro lado da moeda da chacina de Suzano. Se o menino Bernardo tivesse virado um adolescente, um adulto, que tipo de sentimento teria em relação a sociedade na qual ele cresceu? Tentar culpar o acesso as armas, ou a falta de valores morais não foca no fato na gênese dessa violência, que é de origem afetiva: a ausência de afeto, de aceitação e a o foco na frustração de viver em grupos sociais pautados pelo bullying, pela indiferença, pelo sarcasmo pelo desrespeito.
Luciano Medina Martins | jornalista
(Header photo: progressive-charlestown.com)